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Educação indígena construída com luta, alianças e apoio Fundep

Programa de Implantação de Escolas Indígenas (Piei) é conquista histórica de povos indígenas e, em Minas Gerais, completa 30 anos, com participação ativa da UFMG.

Ney Felipe

Professores Maxacali realizando um trabalho em grupo. Foto: Kléber Gesteira/Acervo pessoal.

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Sonhando com escolas em suas comunidades, indígenas mineiros acabaram sentando pé, de vez, numa das melhores universidades do País. O pontapé inicial foi a articulação do Programa de Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais (Piei-MG) – a partir de uma parceria entre povos indígenas, Secretaria de Estado da Educação (SEE/MG), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Estadual de Florestas (IEF) – que resultou na formação de indígenas para o ensino dos níveis iniciais da educação formal, um projeto que chegou aos 30 anos com apoio Fundep.

A conquista de escolas indígenas em suas próprias comunidades é resultado de uma luta iniciada ainda nos anos 1980, quando povos indígenas do Acre criaram a Comissão Pró-Indígenas e reivindicavam assumir o protagonismo na educação dentro de suas comunidades, inspirando indígenas de outros estados. A movimentação nacional resultou na garantia da educação indígena na Constituição de 1988, mas só em 1996, com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a educação escolar indígena deixou de ser competência da Funai e passou a ser responsabilidade do Ministério da Educação (MEC).

A mudança impulsionou universidades e governos estaduais a criarem programas específicos para atender a essa demanda. Foi nesse contexto que nasceu o Piei, um programa nacional articulado por diferentes instituições, adaptado em cada estado conforme as especificidades locais. Em Minas Gerais, a coordenação pedagógica coube à UFMG, que recorreu ao apoio Fundep para assumir a gestão financeira e administrativa e assim operacionalizar os encontros com os indígenas Pataxó, Maxakali, Krenak e Xakriabá, então reconhecidos como povos originários no Estado.  

Escolas feitas por e para povos indígenas

Professores Maxacali realizando a pintura de uma escola construída na aldeia. Foto: Kleber Gesteira/Acervo pessoal.

Uma das premissas do Piei é que, para haver escolas indígenas é necessário haver professores indígenas, para que o  ensinar e aprender ocorram de acordo com suas culturas. O programa possibilitou que professores indígenas fossem formados e que escolas fossem conduzidas por lideranças das próprias comunidades.

Em 1996, o primeiro curso de magistério indígena foi realizado no Parque Estadual do Rio Doce, com 66 alunos das quatro etnias. O modelo foi híbrido, com aulas presenciais nas aldeias e estágios supervisionados. A primeira turma se formou em 2000. Depois, vieram outras: 71 professores em 2004 e 80 em 2008. O PIEI/MG foi encerrado em maio de 2011. Naquela ocasião, o programa havia formado 132 indígenas de diversas etnias.

Na fase intensiva, realizada durante as férias escolares, os professores indígenas — que já atuavam em suas aldeias — iam até a UFMG para ter aulas com professores da universidade. “Era um período de imersão, com disciplinas que buscavam integrar saberes acadêmicos e conhecimentos tradicionais”, explica Márcia Spyer, uma das articuladoras do Piei-MG.

Na fase de estágio supervisionado, que acontecia durante o ano letivo, nas próprias aldeias, os professores-estudantes lecionavam para crianças e adolescentes indígenas, enquanto recebiam acompanhamento de docentes da UFMG. O objetivo, segundo o antropólogo Kléber Gesteira, também articulador do Piei em Minas, era “estabelecer uma dinâmica que respeita a vida comunitária e permite que a formação acadêmica fortaleça a prática pedagógica no território indígena”.

E foi justamente para garantir essa dinâmica que a Fundep foi escolhida pela UFMG como gestora do projeto. Viabilizar pagamentos, bolsas e contratos em comunidades remotas, com todas as burocracias públicas envolvidas, exigia uma estrutura ágil e confiável. “Era uma burocracia complexa, mas a Fundep correu atrás. Garantiu a remuneração dos professores, das equipes de apoio. No início eram apenas bolsas, mas com o tempo isso foi ampliado. E esse apoio permitiu que o projeto crescesse”, reforça a professora Márcia Spyer.

Educação que segue transformando realidades

O PIEI/MG foi encerrado em maio de 2011, mas foi o percursor de projetos que continuam mudando vida nas comunidades Indígenas. A Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei) é um destes projetos. Trata-se de um curso superior oferecido pela UFMG em 2009, visando formar educadores indígenas para os anos finais do ensino fundamental e ensino médio.  

“A caneta é uma arma muito forte. Nossos velhos não tiveram acesso à escrita e à leitura, mas hoje a gente sonha com doutorados. Quero que os jovens da minha comunidade vejam que também podem chegar lá”.

– Hierú Pataxó, professor e aluno da Formação Intercultural Indígena

“O Piei terminou porque ele cumpriu a sua missão: levou escolaridade às áreas e formou professores da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Formos os professores em nível de magistério, ensino profissionalizante. Mas estes professores quiseram mais: estavam prontos para uma próxima etapa e a Universidade era essa etapa”, concluiu, Kleber.

Da mesma forma que o Piei, o Fiei também foi construído, em conjunto, por acadêmicos da Universidade e lideranças dos povos originários atendidos – que hoje já são 19. Para muitos indígenas, a escola se tornou símbolo de resistência e transformação. É o caso do jovem professor Thayronne Senhorio, 22 anos, conhecido como Hierú Pataxó em sua aldeia em Porto Seguro (BA).

“A caneta é uma arma muito forte. Nossos velhos não tiveram acesso à escrita e à leitura, mas hoje a gente sonha com doutorados. Quero que os jovens da minha comunidade vejam que também podem chegar lá”.

Estado reforça apoio à educação indígena e preservação cultural

Com apoio contínuo da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE-MG), o programa se fortaleceu, sempre respeitando a legislação e as diretrizes nacionais da Educação Escolar Indígena e buscando valorização das culturas e o respeito à autonomia dos povos continuam como princípios fundamentais.

Em nota, a Secretaria de Educação afirmou que o compromisso permanece: garantir acesso, permanência e fortalecimento da identidade cultural nas escolas indígenas. Pablo Camargos, historiador e técnico indigenista da Funai, vê espaço para expansão: “Minha expectativa é que o programa ultrapasse fronteiras, atinja novas comunidades, quem sabe, inclusive, para outros países, já que muitos povos têm cultura de migração”.

Aprendizados, transformações e sonhos que seguem adiante

Lideranças Pataxó. Foto: Kleber Gesteira/Acervo pessoal.

“A universidade tem dificuldade em ouvir. O Piei nos ensinou a escutar”.

– Márcia Spyer, Professora da Faculdade de Educação da UFMG

Ao olhar para trás, os professores envolvidos sentem orgulho da trajetória. “Diria ao Kléber de 20 anos atrás: vai dar certo. Aproveite cada momento com os indígenas, jogue futebol com eles, vá para a escola. Foi um processo que valeu a pena”, conta Kléber Gesteira. Márcia Spyer também valoriza a escuta: “A Universidade tem dificuldade em ouvir, o Piei nos ensinou a escutar. Esse tempo nas aldeias, cerca de uma semana, era transformador.”

E, como sonha Hierú Pataxó, a jornada continua: “Quero novos espaços escolares, quadras, parques. Quero ver minha comunidade crescer. E quero seguir na universidade. Ser doutor. Porque se eu consegui, outros também vão conseguir.”

Edição: Tacyana Arce
Edição web: Marcelo Cardoso